Os 4 A’s do Futuro

Hoje, mais de 800 milhões de pessoas ao redor do mundo irão dormir nas ruas, em calçadas, expostas ao frio, chuva e demais perigos. Enquanto você lê isso, 184.638  mil irão dormir sem nenhum alimento no Brasil. Dessas, 42.240  não terão acesso nem a um banho sequer aqui na cidade de São Paulo. Esses “invisíveis” cada vez mais visíveis são cerca de mais de 20 mil mulheres além de mais de 500 pontos com crianças e adolescentes em situação de rua no município paulista.

Como as grandes metrópoles estão lidando com isso?

Em alguns lugares, os custos diretos e indiretos desse público aos cofres públicos interferem em questões imobiliárias, sensação de segurança e ciclo de atendimentos hospitalares, levando até ao êxodo de investimentos   como na costa oeste americana, por exemplo.

Contudo, temos aqui no Brasil uma resposta cada vez mais consolidada para esse desafio que, junto aos desafios climáticos, aparece como as pautas do futuro.

A ABCP – Associação Beneficente e Comunitária do Povo, tem dado uma excelente resposta perante esse desafio. Com mais de meio milhão de atendimentos em diversas frentes nos últimos 15 anos, tirou mais de 300 pessoas da situação de rua, além de acolher cerca de 70 pessoas por ano em cinco casas, sendo duas repúblicas e duas casas terapêuticas em parceria com a secretaria estadual de desenvolvimento social do estado de São Paulo, e uma por parceria própria, tendo uma margem de empregabilidade próximo ao 100% e dando reinserção produtiva e social para cerca de 8 pessoas por mês. Além de mais de 30 toneladas de alimentos doados e mais de 40 pessoas sendo acompanhadas para elevação de escolaridade e capacitações junto à parceiros como SEBRAE e SENAC, alcançando cerca de 400 pessoas por semana promovendo uma trilha que vai da calçada à casa do acolhido, com acompanhamento de assistentes sociais, psicólogos, médicos, dentistas etc.

Para se ter uma ideia, esta iniciativa, de acordo com estudo do Junta internacional de fiscalização de entorpecentes (JIFE) é capaz de cooperar na economia de até 300 mil reais dos cofres públicos anualmente.

Com uma metodologia validada junto ao próprio governo de São Paulo, o processo leva cerca de 18 meses e o chamamos de 4 A ‘s:

Tudo começa todas às sextas-feiras, quando colaboradores e voluntários vão até ao centro da cidade distribuir alimentos e realizar uma primeira entrevista com pessoas em situação de rua. Com essa conexão, é feita a divulgação da ABCP que chamamos de “Abordagem”.

No segundo “A”, que chamamos de Acolhimento, abrimos as portas da nossa sede para cerca de 100 pessoas em vulnerabilidade. Lá, na Vila Mariana, elas têm atendimento social, psicológico, corte de cabelo, distribuição de roupas, momento de escuta ativa, além de café da manhã e almoço, quando o ápice do dia chega. Um carro nosso fica na porta da instituição esperando os que vão aceitar nosso convite para saírem das ruas naquele exato momento. Os que aceitam, são encaminhados com kit de higiene, além de prévio registro para uma das nossas comunidades terapêuticas parceiras, entrando assim no nosso terceiro “A”.

No Acompanhamento, além de encaminhar suporte de alimentos e monitorar com nossa equipe técnica a evolução de cada um deles, passam-se cerca de 6 meses do período da desintoxicação eventual de qualquer substância, quando ele é convidado para uma entrevista feita pela nossa equipe técnica. Nela, vamos avaliar o perfil desse acolhido para que ele entre no nosso quarto e último “A”, a Autonomia.

Vindo para uma das nossas repúblicas- casas de alto padrão de até três andares na Vila Mariana e Ipiranga – encaminhados pela Rede do Programa Recomeço, da SEDS – Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, ou por alguma comunidade parceira, ele entrará num programa completo e intenso de acompanhamento psicológico, social, profissional e médico, diariamente, feito por profissionais voltados exclusivamente para desenvolver hábitos de autocuidado, autogestão, educação financeira, encaminhamento profissional e vocacional. Este programa também recebe supervisão e auditoria estatal, por meio da COED – Coordenadoria Estadual de Políticas sobre Drogas.

Passado cerca de seis meses nessa intensidade, temos em uma das casas, por exemplo, o feito de 92% de taxa de sucesso. Em outras palavras, 9 entre dez que chegam nessa república saem da situação de rua ou estão empregados em suas próprias casas agora.

Agora, chega a vez da cerimônia do tapete vermelho, quando esse ‘ex-pessoa em situação de rua’ que já fez sua reserva financeira (nossos acolhidos saem da nossa república com uma média de 3 mil reais guardados já que, enquanto conosco, não tem gasto nenhum sendo incentivados a criarem sua reserva financeira como parte do contrato assinado quando entram no nosso serviço)  caminha para sua casa, com seus próprios móveis, tendo migrado da extrema pobreza para classe C em cerca de 18 meses, quando em alguns países isso demora até 9 gerações.

Do primeiro contato numa calçada no centro da cidade até o Tapete Vermelho, na ABCP, passam-se meses de um relacionamento personalizado baseado na excelência técnica e na certeza de que é possível mudar realidades e voltar a sonhar, como eles próprios costumam testemunhar quando estão conosco.

Para finalizar, gostaria de lembrar um estudo da faculdade de Stanford chamado “Teoria da Vidraça Quebrada” – usado, inclusive, na retomada social da cidade de Nova York na década de 90.

A teoria sugere que, após longas observações, uma simples vidraça quebrada em uma vizinhança influencia a quebra ou não-cuidado de outros estabelecimentos e/ou outros equipamentos públicos por parte da população local, sendo responsável por uma reação em cadeia que pode levar até a escaladas de violência ou depredação pública.

Se uma vidraça quebrada pode interferir tanto assim no comportamento de uma pessoa, imagine o impacto que têm de assistir diariamente uma pessoa abandonada na calçada na vida de um cidadão?

Além dos 4 “A ‘s”, o nosso último e mais importante “A’”, é o Amor. Apesar de números expressivos, se somente tivéssemos ajudado uma única pessoa, todo esforço já teria valido a pena.

Artigo escrito por Helcio Honda, originalmente publicado na revista Abit Review número 4.

 

 

 

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