Construção das condições para um ciclo de crescimento
Por Samuel Pessoa*
O Brasil constrói desde 2015 as condições para um ciclo longo de crescimento. Comparando com o período 1998-2005, os ajustes, fiscal e externo, a desvalorização e a perda real dos salários da atual fase são menores. Na parte fiscal, ainda há mais ajuste a se fazer hoje.
Desde as manifestações de 2013, a economia brasileira passa por um longo e conturbado período, causado em grande parte pela política.
Na economia propriamente dita, entramos em uma duradoura crise no segundo trimestre de 2014, que terminou somente no final de 2016. A retomada foi lentíssima. Quando a pandemia nos atingiu, o mercado de trabalho estava ainda muito longe da recuperação plena.
Desde o terceiro trimestre de 2020, entretanto, a atividade se recupera rapidamente. No primeiro trimestre deste ano, já operávamos no nível pré-crise, mas de forma muito heterogênea.
Em meio a toda essa confusão, na política e na economia, aos trancos e barrancos, a economia vem construindo desde 2015 as condições para um ciclo longo de crescimento.
Nesta coluna Ponto de Vista, apresentaremos a atual dinâmica de ajustamento ainda inconcluso, bem como tentaremos documentar o paralelismo entre o processo atual e o observado entre 1998 e 2005.
A construção das condições macroeconômicas para um ciclo de crescimento aparece nas seguintes estatísticas: contas públicas, setor externo, câmbio real, salários e rentabilidade do setor privado.
É difícil acompanhar a situação fiscal, pois ela se altera muito com o ciclo econômico. As condições se tornam mais graves se há uma pandemia e se o país sofre choques externos intensos, como é o caso de uma economia especializada na produção de commodities como o Brasil.
A variável fiscal que consideramos é o superávit primário recorrente do setor público consolidado – União, Estados e municípios –, ajustado ao ciclo econômico. Receitas e despesas não recorrentes, como, por exemplo, receitas de privatizações ou gastos com a pandemia, não são levadas em conta.
Evidentemente, o cálculo do resultado primário estrutural depende da construção de uma medida da posição cíclica da economia ao longo do tempo. Bráulio Borges, meu colega do FGV-IBRE, apresentou um conjunto dessas medidas no Blog do Ibre.[1]
De posse da trajetória do hiato de recursos – se positivo, há pleno emprego; e o inverso ocorre, se é negativo –, Borges calculou o resultado fiscal primário estrutural.
De 1998 a 2003, o primário estrutural melhorou 4,5 pontos percentuais (pp) do PIB: de déficit de 1,2% do PIB (1997) para superávit de 3,3%. Desde 2015, o primário estrutural melhorou 1,6pp do PIB: de déficit de 1,5% do PIB em 2014 para superávit de 0,1% em 2020.
No final de 1997, as exportações líquidas acumuladas no ano – dados do IBGE a preços constantes de 1995 – eram deficitárias em 3% do PIB. No final de 2005, atingiam superávit de 4,3% do PIB. Virada de 7,3pp do PIB.
No atual ciclo, no fim de 2014 as exportações líquidas eram deficitárias em 3,7% do PIB e fecharam 2020 superavitárias em 0,8% do PIB, com virada de 4,5pp do PIB.
O mesmo processo pode ser observado no câmbio. Para calcular o câmbio real, deflacionamo-lo pela diferença da inflação brasileira e a inflação média dos parceiros comerciais. O peso de cada parceiro é dado pelo participação na corrente de comércio com o Brasil.[2] O câmbio sai de R$2,6 por dólar no final de 1997 para R$4,8 ao fim de 2004 (o pico ocorreu no quarto trimestre de 2002, quando o câmbio real atingiu R$6,0), com desvalorização de 85%. Todos os valores são a preços do segundo trimestre de 2021. No atual movimento, o câmbio sai de R$3,7 para R$R$5,3 no segundo trimestre de 2021, desvalorização real de 43%.
No ajuste do final da década de 90 e início dos anos 2000, houve redução dos salários reais. Entre 1997 e 2004, o salário – medido pelo rendimento médio real habitual da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD – caiu de R$2.010 para R$1.658, redução de 17%.
Não se observa queda do salário real para o rendimento médio real habitual da PNAD no ciclo recente de ajuste macroeconômico. A variável subiu de R$2.483 em 2014 para R$2.602 em 2020. Sabemos, no entanto, que o mercado de trabalho foi muito impactado pela pandemia e que a composição da força de trabalho se alterou profundamente. É possível que a subida do salário seja fruto da elevação da participação, na população empregada, dos trabalhadores mais qualificados do setor formal, que foram os menos atingidos pela crise da pandemia.
Daniel Duque, meu colega do FGV Ibre,[3] realizou análise em que considerou oito grupos de trabalhadores: duas categorias educacionais, até médio completo e acima; dois setores, agropecuária e indústria (primeiro setor), e serviços (segundo); e a natureza do contrato de trabalho, se formal ou informal.[4] Tomando como base o quarto trimestre de 2014, até o primeiro trimestre de 2021 o salário – mantendo constante a composição da força de trabalho nas oito categorias – se reduziu em 12%.
Se os salários reais caíram, a rentabilidade das empresas subiu. Dados da Economática mostram que, para as empresa abertas, a geração de caixa como proporção do faturamento[5] subiu de 15% em 1997 para 27% em 2004. No atual ciclo, a mesma estatística saiu de 16% em 2014 para 23% em 2020.
O que falta para o ajuste? Falta concluir o ajuste fiscal. Como vimos, segundo a medida de Bráulio Borges, o ano de 2020 fechou com superávit primário estrutural de 0,1% do PIB. Para estabilizar a dívida pública é necessário construir um superávit primário estrutural da ordem de 3-3,5% do PIB, algo entre R$200 bilhões e R$250 bilhões.
Evidentemente, essa estimativa do ajuste fiscal adicional depende de que esteja correto o cálculo (mencionado anteriormente) de que, já em 2020, havia superávit de 0,1% do PIB em termos cíclicos. Adicionalmente, os investimentos públicos estão reduzidíssimos. Terão que ser recompostos. Assim, a depender das hipóteses e do gasto necessário para recompor a capacidade de investimento do setor público, o buraco fiscal pode ser maior, chegando a R$350 bilhões.
Esse será o grande desafio do(a) próximo presidente. Ele ou ela terá que terminar a construção do ajuste fiscal estrutural, junto com o Congresso. Será um cardápio em que constarão aumento de receita, redução de subsídios ou reformas que reduzam o gasto (ou sua taxa de crescimento).
Vale lembrar que Lula promoveu em 2003 um forte ajuste. O superávit primário estrutural saiu de 1,9% do PIB em 2002 para 3,3%, ajuste de 1,4pp do PIB. Em grande medida a bonança que Lula colheu foi consequência desse início virtuoso de seu governo. Oxalá aquele acerto tenha sido suficiente para a sociedade e os políticos aprenderem a lição.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de agosto de 2021/ FGV IBRE
*Samuel Pessoa é Físico e professor de economia, é pesquisador do FGV IBRE e sócio diretor do Julius Baer Family Office.
Deixe um comentário